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Manuel Fernando Ngury, refugiado angolano, está trazendo visibilidade e direitos a milhares de refugiados e imigrantes no Brasil.
Manuel, mais conhecido por Ngury, nasceu em 1967 no interior de Angola e, aos quatro anos, tornou-se uma criança deslocada de guerra, tendo viajado cinco meses em busca de locais seguros para se instalar. Este cenário de guerra forçou Ngury a se mudar várias vezes, deixando a escola, parentes e amigos. A única constante na vida de Ngury foi sua participação política, iniciada na infância, onde assumiu uma posição de liderança em grupos de jovens. Eles visitaram hospitais, orfanatos, fábricas e ampliaram sua visão sobre os problemas centrais que o país enfrentava. Ele também seguiu seu pai, que era um grande líder tradicional no país; responsável pela criação da primeira cooperativa de camponeses do pós-guerra, que proporcionou melhores condições de vida a muitos angolanos em Conda, província do Kwanza Sul. No início da década de 1990, Angola assinou um acordo de paz e Ngury percebeu que poderia contribuir para o processo de democratização do país e sensibilizar os cidadãos para as violações dos direitos humanos e injustiças impregnadas nas instituições políticas. Ngury decidiu se dedicar ao jornalismo radiofônico, aproveitando o estabelecimento de rádios independentes. Em 1991 criou o programa “Juventude Presente” que referiu como “a nova voz da sua rádio”. Através deste programa, passou a falar com os grandes dirigentes angolanos e a debater o papel da juventude no seu novo país. Em dois meses, o programa teve audiência recorde. Foi um programa de educação para os cidadãos e teve como objetivo influenciar positivamente a educação e o desenvolvimento dos jovens no que diz respeito aos novos desafios que o país enfrenta; como eleições livres e democráticas e um processo político democrático multipartidário. Em 1992, as primeiras eleições tiveram lugar em Angola e devido à turbulência política que se seguiu Ngury começou a ser perseguido por todo o país. Ele ficou quase um ano vagando de um lugar para outro até receber ajuda de amigos. Com o apoio da Amnistia Internacional e da Caritas, em 1993, Ngury conseguiu sair de Angola. Ele não sabia de seu destino até embarcar no vôo e, ao chegar ao Brasil, percebeu que não havia leis de apoio a refugiados políticos - completamente diferente de outros países da Europa. Ele só tinha direito a documento de identificação e autorização de trabalho. Quando Ngury saiu de Angola estava no terceiro ano da licenciatura em Direito, tinha um emprego e um salário, mas no seu novo país não recebeu ajuda para recomeçar a sua vida. Mesmo assim, com a ajuda de um padre italiano residente em Belo Horizonte e da World Vision, Ngury começou a identificar outros refugiados e, em 1994, criou uma rede informal de apoio a refugiados. Essa foi uma forma estratégica de obrigar o Estado a agir em seu nome. Em 2000, Ngury fundou o Centro para a Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados para trabalhar nesta questão nacionalmente.
“Ngury” está fortalecendo a capacidade de hospedagem de refugiados do Brasil, tanto conceitualmente quanto no nível de políticas e questões legais. Parte de seu trabalho é preparar a sociedade brasileira - mudando a forma como as pessoas pensam sobre refugiados e imigrantes (já que muitos refugiados são legalmente classificados) - inserindo a questão em um discurso de direitos humanos. Ngury também pressiona para garantir os direitos básicos de cidadania dos refugiados, bem como melhorar o acesso à educação e empregos. Ele está começando a transcender o jogo de soma zero tão comum no campo dos direitos humanos (com diferentes grupos lutando por recursos, tempo, etc.) ao colaborar com diferentes grupos, mas isso depende da política que ele espera mudar. Por exemplo, Ngury pode trabalhar com o movimento afro-brasileiro para mobilizar a população refugiada para defender a igualdade de acesso à educação, ou outros movimentos sociais para implementar leis que garantam os direitos econômicos ao emprego. Os vínculos que Ngury cria vão muito além da defesa política: ele também estabelece conexões para os refugiados com os setores social e empresarial, falando habilmente de seus interesses. Essas ligações incluem a mudança de incentivos para o setor empresarial contratar refugiados e imigrantes e a mudança dos termos legais que os impedem de serem admitidos nas universidades. Os países tradicionais de acolhimento de refugiados estão na Europa e na América do Norte. Ao transformar as estruturas do Brasil para hospedar refugiados para serem competitivos em um nível global, Ngury está criando uma mudança no pensamento sobre onde os países anfitriões podem estar.
No Brasil, refugiados e imigrantes, especialmente os da África, se deparam com uma gama quase impossível de preconceitos e obstáculos, incluindo racismo e pobreza. Eles sofrem com a discriminação racial, étnica e social, profundamente inerente à cultura e memória social brasileiras. Por sua origem e condição, o preconceito social é ainda maior. No entanto, a causa dos refugiados tem sido negligenciada pelo movimento e defensores dos direitos humanos porque eles têm uma orientação de soma zero e temem competir com os refugiados pela atenção e recursos públicos. Por outro lado, a grande maioria dos brasileiros ou ignora a existência de refugiados no país ou os vê como “criminosos” e “delinquentes”. Desde o início da formulação das políticas internacionais de proteção aos refugiados, o Brasil assumiu uma posição de liderança, sendo o primeiro país do Cone Sul a ratificar a Convenção da ONU de 1951 sobre o Estatuto do Refugiado. Apesar disso, o contexto social, econômico e político do cenário é caracterizado por graves barreiras impostas pela Lei do Estrangeiro, criada durante a ditadura militar, e por imperativos burocráticos que atuam como obstáculos à eficácia da lei. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), no Brasil existem cerca de 3.458.000 refugiados reconhecidos, sendo o maior grupo proveniente do continente africano com metade deles, 1.751.000, de Angola. A população de refugiados no país quase dobrou nos últimos seis anos (UNHCR Statistical Yearbook 2005). De acordo com dados recentes publicados online pelo Ministério da Justiça do Brasil, embora não oficiais, há um contingente de quase 836 mil imigrantes regulares e 200 mil pessoas que permanecem ilegalmente no país. Nos últimos anos, a resposta do Estado brasileiro a essa questão tem sido uma política de imigração restritiva de caráter seletivo. Muitas são as restrições relacionadas à permissão para trabalhar, reconhecimento de diplomas estrangeiros, salários e condições de trabalho, acesso a serviços de saúde, educação, moradia e cidadania mínima. Quem busca ter sua situação legalizada no país enfrenta uma longa fila de espera e uma burocracia excessiva na expedição de seus documentos civis básicos. Essas barreiras burocráticas também estão presentes no acesso a programas sociais administrados por instituições públicas, sob a justificativa de que essas políticas públicas são reservadas aos brasileiros nativos. O cenário social que decorre dessas e de tantas outras dificuldades é o de grave desemprego e miséria, apesar de, em tese, a Lei proteger o direito ao trabalho no país. No acesso à educação e ao emprego, praticamente não existem programas governamentais que os contemplem ao mesmo tempo que eles são impedidos de acessar os que existem para os brasileiros, como é o caso das ações afirmativas. Apesar das iniciativas esparsas de organizações religiosas, muito pouco desse cenário está mudando no Brasil. Em parte, isso ocorre porque essas organizações não respondem com eficácia ao problema - sendo orientadas para a caridade e baseando seu trabalho exclusivamente na assistência social. Globalmente, estudos recentes revelam que este cenário será severamente agravado nas próximas décadas devido aos chamados “refugiados do clima”. De acordo com o Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), o aquecimento do planeta vai causar um êxodo massivo de milhões de pessoas, expulsas de suas terras por causa de secas e doenças. Os números podem chegar a 50 milhões de refugiados em 2010 e até 150 milhões em 2050. Um estudo realizado em 2000 pela Cruz Vermelha estimou que 25 milhões de pessoas estavam prestes a migrar devido à deterioração de seu meio ambiente, quase atingindo o mesmo número de refugiados que fogem de conflitos armados. Os anfitriões tradicionais de refugiados, como a Europa, não serão capazes de acomodar esse fluxo crescente de migração humana.
O trabalho de Ngury é criar estratégias que mostrem às autoridades públicas e à sociedade como lidar com a questão dos refugiados. Sua organização, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados (CEDHUR), desenvolve projetos com uma abordagem que se tornou referência na área. Suas estratégias são baseadas em cinco novas visões que ele traz para o problema: 1) Verdadeira legitimidade - seu trabalho começa com a motivação de empoderar seus pares, em uma abordagem endógena, totalmente legítima e coerente com sua formação pessoal 2) Novo conceito - ele redefine o conceito de refugiado sob uma orientação de direitos humanos, libertando-se de julgamentos políticos e preconceito público, mostrando como a questão dos refugiados é derivada de sérias distorções da economia global 3) Defesa de direitos - ele força o governo a colocar em prática a cidadania plena direitos para refugiados, reorientando a Lei de Estrangeiros e mudando o refugiado de fato para um "refugiado de direitos" 4) Novas responsabilidades - ele mostra que todos são responsáveis pela migração humana em todo o mundo e envolve todos os três setores para assumir seus papéis e agir; 5) Nova conjuntura mundial - ele traz novas alternativas para países de acolhimento de refugiados em um contexto de intensa migração humana, que provavelmente se agravará devido às mudanças climáticas nos próximos anos. Como os refugiados no Brasil não têm representação política ou direitos de participação cívica, como votar, o CEDHUR, criado e composto por refugiados, precisaria operar sob severas restrições. Portanto, Ngury identificou com tato os fiadores que poderiam levar suas demandas e ideias para a esfera pública; aumentando a possibilidade de ação. Isso se dá por meio de colaborações solidárias com outras organizações de cidadãos e movimentos sociais para que incluam a questão dos refugiados em sua práxis, representando indiretamente os refugiados. Ngury estabeleceu parcerias estratégicas com vários desses movimentos e organizações e, dependendo da questão específica que busca atacar, faz uso de suas redes, plataformas e agendas, para trazer visibilidade e eficácia à sua causa. Por exemplo, ele identificou o movimento afro-brasileiro como um potencial defensor de sua causa e habilmente revelou suas identidades comuns. Junto ao setor público, Ngury está sensibilizando os agentes públicos por meio de uma ação de advocacy no Congresso Nacional. Dessa forma, ele consegue modificar a conduta do poder público, recebendo apoio político da Comissão de Direitos Humanos do Governo Federal e da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, além do Prefeito de Belo Horizonte e de vários deputados estaduais. Ele fortalece novamente essas ações de advocacy, por meio da articulação com movimentos e organizações sociais; criar agendas comuns que incorporem as demandas dos refugiados no processo de mobilização política. Na esfera pública e no que diz respeito às políticas educacionais, Ngury estabeleceu parcerias com importantes universidades federais (UFMG, UFF, UFJF) para o ingresso de refugiados e garante sua permanência com programas de assistência social, como hospedagem e alimentação, bolsas e assistência médica. . Muitos imigrantes vêm para o Brasil como estudantes capazes de se identificar com a língua portuguesa (já que a maioria é de ex-colônias portuguesas) e o acesso ao ensino público sênior pode significar melhores chances de integração social. Esta experiência abriu um processo que o Ngury conseguiu converter em política nacional com a articulação do Ministério da Educação ao programa “Pró-Refúgio” - Programa Nacional de Apoio Educativo a Refugiados. Este programa visa garantir o acesso à educação e melhores condições para os refugiados realizarem seus estudos no Brasil. No que diz respeito à parceria do CEDHUR com o setor privado, a estratégia é a de criar oportunidades de emprego para refugiados e imigrantes, especialmente em empresas que tenham relações económicas expressivas em e com países africanos. Ao utilizar o argumento da responsabilidade social dessas empresas no contexto africano, conectado à realidade brasileira, ele consegue abrir canais de negociação e sensibilizar o setor sobre seu papel no processo de migração humana e conflitos. Ngury tira ainda partido de uma lei nacional angolana que regulamenta a contratação de, pelo menos, 50 por cento de angolanos em empresas estrangeiras que operem no país, para reforçar este papel. Ngury também está engajado na orientação jurídica dos refugiados junto com o Centro de Estatísticas Religiosas e Pesquisa Social (CERIS) no âmbito do Programa de Ação de Durban. Ele acessoriza e conduz inquéritos de asilo e refúgio, desafiando diretamente a manipulação e a centralidade do governo e seus instrumentos burocráticos. Ele também está preenchendo uma lacuna no setor social, uma vez que a maioria das organizações tem se concentrado em questões de imigração e carece de uma abordagem transformadora que verdadeiramente represente os refugiados. Embora disfarçado, Ngury está revelando os problemas que dominaram os direitos humanos e as políticas públicas no Brasil ao abordar as questões dos refugiados. No futuro, Ngury vislumbra novas estratégias, como trabalhar com a mídia para divulgar a situação dos refugiados e aumentar a conscientização pública por meio de campanhas em todo o país. Ele também espera fomentar a discussão sobre qual será o papel do país na dinâmica global da migração humana nos próximos anos.